Filme do Dia: Na Boca do Mundo (1978), Antônio Pitanga
Na Boca do Mundo (Brasil, 1978).
Direção: Antônio Pitanga. Rot. Original: Leopoldo Serran, a partir do argumento
de Cacá Diegues & Antônio Pitanga. Fotografia: Fernando Duarte. Música:
Jorge Ben. Montagem: Sérgio Sanz. Dir. de arte e Figurinos: Régis Monteiro. Com:
Antônio Pitanga, Norma Bengell, Sibele Rubia, Angelito Mello, Milton Gonçalves,
Telma Reston, Maurício Gonçalves.
Antônio (Pitanga) é um frentista que
se envolve com a grã-fina Clarisse (Bengell), em crise depressiva. O
envolvimento dos dois desperta os ciúmes da noiva virgem de Antônio, Terezinha
(Rubia), que decide, ao final de contas, que ele deve se aproveitar do dinheiro
de Clarisse para que consigam concretizar o sonho de sair do lugarejo no qual
vivem e partir para o Rio de Janeiro. Antônio se engaja no plano que prevê,
inclusive, que ele a engravide. Tudo começa a se complicar quando Antônio,
bêbado, descobre que se tornara motivo para que Clarisse voltasse a se
interessar pela vida e revela toda a verdade. Clarisse não o perdoa e, quando
voltam a se encontrar, de modo sereno o envenena, e ateia fogo na casa, dando a
impressão de ser mais um dos incêndios acidentais típicos na comunidade
provocados pela mescla entre álcool, lampião e habitações de palha. Na sua
partida da cidade, oferece carona para que Terezinha consiga satisfazer seu
sonho de conhecer o Rio.
Tomando-se sua primeira metade como
critério, deve-se ressaltar a puerilidade do argumento, seu desenvolvimento,
assim como da técnica são mais que flagrantes. Para não falar da própria e
canhestra interpretação dos atores, com destaque especial para a interpretação
abaixo de qualquer critério de Sibele Rubia. Tateando em termos de estruturação
visual de uma narrativa cinematográfica, Pitanga, ator-fetiche do Cinema Novo e
de um cinema que tematize a questão racial, em sua única incursão como
realizador, chega a um nível de precariedade no qual nem mesmo a continuidade
consegue de algum modo maquiar a falta
completa de balanceamento da interpretação do elenco quanto aos ângulos
inusitados de um plano com relação ao que lhe antecede, acabando por
transformar mesmo os planos que seguem uma determinada ação dos personagens,
como evidente testemunho de terem sido filmados em momentos distintos. O tom
“declamatório” com que os atores se dirigem uns aos outros e a péssima
utilização sem o menor critério da trilha de canções da MPB complementam o
quadro. Bengell, vivenciando uma personagem rica e em “crise existencial” é a
própria imagem do clichê. Dito isso, o mais surpreendente é que o interesse
pelo desenrolar da trama consiga não apenas relativamente se sustentar, mesmo
que sobre fundamentos tão precários, como se descortina, na segunda metade do
filme, uma proposta que não exatamente desconstrói, mas provoca constantes
torsões na idéia que havia sido aclimatada em sua primeira parte, e tem-se, no
conjunto, um filme para além de instigante. Até mesmo no âmbito da imagem chega
a apresentar belas composições, como a de Bengell próxima da câmera com Pitanga
ao fundo numa praia. No plano ideológico, sua critica da dominação do negro que
sugeria ser demasiado explícita para se constituir como verdadeiramente
alegórica, na figura do negro objeto do desejo de uma mulher branca que o chama
repetidamente de “bom selvagem”, sofre uma primeira ruptura, quando o “bom
selvagem” se revela, na verdade, um mau caráter e aproveitador. O que parecia
se constituir então como um típico filme que desconstrói às expectativas
habituais de paternalismo da elite e apresenta a pujança do oprimido diante de
seu pretenso opressor, bem típica do período, sofre uma nova ruptura ao final,
quando do assassinato de Antônio, algo que rearticulando a primeira concepção.
Sua anemia em termos de alegoria sugerida em sua primeira metade se revela, ao
final das contas, duplamente enganosa, seja por conta das reviravoltas acima
citadas, como igualmente por momentos mais sutis em que se apresenta uma
reflexão sobre as diferenças entre os dois mundos posta, como na seqüência em
que Clarisse pretende dançar ao som da última moda, um hit da disco music
brasileira com as Frenéticas, e Antônio afirma que só sabe dançar colado,
reafirmando a figura de um mundo de convenções ainda menos individualistas e
liberais burguesas. Talvez não seja exatamente um pecado o filme atirar em
várias frentes ao mesmo tempo, no plano ideológico, apresentando um final que
acena, inclusive, para uma possibilidade de leitura feminista e certamente não
o é as suas excessivas reviravoltas, mas próximas do melodrama ou do filme
alegórico do que propriamente de uma leitura realista. Curiosamente, mesmo que
o filme esteja longe de vitimizar nenhum dos envolvidos, os apresentando
enquanto plenamente humanos em suas alternâncias de poder, não apenas o domínio
de Antônio sobre Clarisse é bem menor, em termos de tempo quanto a reação de
cada um a adversidade imposta pelo outro é diametralmente oposta – Antônio se
apieda de Clarisse no momento de maior tensão, enquanto essa o mata – quase que
implicitamente concordando em algum grau com a pretensa docilidade de Antônio,
docilidade essa que, em última instância, lhe provocará sua própria morte. O
conjunto do filme parece dever menos a Pitanga, por conta do aludido, do que ao engenhoso
roteiro, que consegue, inclusive, se centrar muito mais no momento em que as
ações transcorrem, do que em tentar criar uma moldura que torne compreensível os
personagens a partir de seus passados. Essa “sonegação” ou tênue informação
sobre o passado dos personagens igualmente faz com que o espectador se veja a
todo momento tendo que rever suas hipóteses temporárias sobre o filme.
Embrafilme/Lente Filmes para Embrafilme. 100 minutos.
Comentários
Postar um comentário