Filme do Dia: Assassinos da Lua das Flores (2023), Martin Scorsese

 


Assassinos da Lua das Flores (Killers of the Flower Moon, EUA, 2023). Direção Martin Scorsese. Rot. Adaptado Martin Scorsese & Eric Roth, a partir do livro de David Grann. Fotografia Rodrigo Prieto. Música Robbie Robertson. Montagem Thelma Schoonmaker. Dir. de arte Jack Fisk & Matthew Gatlin. Cenografia Adam Willis. Figurinos Jacqueline West. Maquiagem e Cabelos Beate Petrucelli & Kay Georgiou. Com: Leonardo DiCaprio, Robert De Niro, Lily Gladstone, Jesse Plemons, Tantoo Cardinal, John Lithgow, Brendan Fraser, Cara Jada Myers, Janae Collins, William Beilleau.

Em 1919, o ambicioso Ernest Burkhart (DiCaprio) retorna da guerra em busca de emprego junto ao tio William “Bill” Hale (De Niro), conhecido por sua enorme influência junto a tribo Osage, proeminente nacionalmente após a descoberta de petróleo em suas terras, tornando-se o condado mais rico per capita do país. Hale designa o sobrinho, sem maiores qualificações, a ser motorista, e ele ganha as graças de uma mulher mais precavida que a maior parte das outras mulheres da tribo, Mollie Kyle (Gladstone). O tio lhe sopra a possibilidade de riqueza, embora Ernest de fato se afeiçoe de Mollie. O casamento é consagrado junto à comunidade Osage e brancos. Uma série de eventos, tendo Bill Hale nos bastidores, e muitos deles com a cumplicidade de Ernest, provocam a morte de vários membros da comunidade, incluindo duas irmãs de Mollie e um amigo seu de infância, Henry Roan (Beilleau). Após mais de duas dezenas de mortes, Mollie, extremamente enferma de diabetes, decide ir a Washington apelar ao presidente norte-americano. Algum tempo depois, chega na comunidade o procurador federal Thomas Bruce White (Plemons) e vários agentes do FBI, que rapidamente ligam os pontos e encontram os principais culpados. Eles conseguem, em um primeiro momento, contar com o depoimento de Burkhart denunciando o tio, mas após um encontro com vários nomes importantes da comunidade, e também o advogado de defesa de Hale, Hamilton (Fraser), muda de opinião.

Aparentemente a mais consistente produção dirigida pelo realizador em anos, há pleno domínio narrativo e uma relativa sustentação do interesse, apesar de sua proeminente metragem. Porém toda esta virtuosidade se depara com uma fórmula demasiado conhecida, da qual se afasta capilarmente, mas não em essência. Sua crítica de aspectos da sociedade estadunidense tem como recibo uma reação que não deixará os Osage desassistidos, embora com bastante lerdeza – e associando tal motivação à figura quase imaculada da Mollie de Gladstone, de longe a interpretação a se destacar no elenco. DiCaprio incorpora bem seu personagem e De Niro apela para seu histrionismo facial de sempre. Assim, aponta-se para uma sociedade extremamente violenta e desigual, cuja violência se ressaltará em detrimento da desigualdade evidentemente, da forma vicária e voyeurista de sempre. Por vezes ficamos com a incômoda sensação que apenas houve o deslocamento do universo dos gangsteres ítalo-americanos tão caros a Scorsese para uma realidade temporal e socialmente distinta, mas nem tanto assim. A vilania do personagem de De Niro é cansativa e se, no outro extremo, temos a imperturbável força de caráter de Mollie, resta um único personagem mais nuançado, o de Ernest, justamente o mais fraco. Porém, quando o Estado irrompe, com o recém-criado FBI, percebe-se que os personagens não mais ficarão vulneráveis ou atuantes a partir de seu próprio micro-universo. De uma forma caricata, no esforço desesperado para salvar a vida de Mollie – embora Scorsese apresente uma versão domesticada e suave, pela distância do tempo, em seu fecho transmitido pelas ondas do rádio, não há uma repercussão midiática do evento no momento ocorrido, para além dos repórteres a fotografarem e tentarem algum pronunciamento dos envolvidos.  Uma outra pequena variação da fórmula, aliás, foi encenar um programa de rádio de auditório sendo transmitido ao vivo para fazer às vezes dos comentários finais – habitualmente escritos – sobre o ocorrido, após o arco dramático acompanhado, com as figuras históricas revisitadas pelo filme – e que já haviam gerado um filme a respeito, na própria época e hoje considerado perdido, Tragedies of the Osage Hills, quase um século antes. Nesta evocação radiofônica nada sutil, teremos o ápice com o próprio Scorsese relatando o fim de Mollie. E se esta surge como a típica mulher a apoiar o marido, mesmo depois de saber de sua colaboração na morte das irmãs, a situação se configurará de forma distinta, ainda que quase praticamente fora já da narrativa, antecipada apenas por sua retirada em silêncio da sala onde se encontrava anteriormente reproduzindo a mesma mulher compassiva e resoluta de sempre. Já a representação como trama para um programa de rádio, repleta de efeitos sonoros, bem poderia caber como comentário ao próprio filme de Scorsese enquanto espetacularização de um episódio histórico tendo como fim maior o entretenimento. Com a virtuosidade dos efeitos sonoros do drama radiofônico se transformando, por exemplo, em um longo plano-sequencia a passear por vários dos aposentos da casa de Mollie. Ou ainda nas diversas mortes impecavelmente realistas, estourando crânios e fazendo miolos saltarem. Quando Scorsese incorpora ao seu elenco nomes que se destacaram a partir do trabalho recente de colegas suas diretoras, Jesse Plemons (Ataque dos Cães) e, sobretudo, Lily Gladstone (First Cow), parece buscar uma fonte de renovação para um modelo já um tanto desgastado. E quando se compara a interpretação sutil e nuançada de Gladstone aos careteiros DiCaprio e, mais que todos, De Niro, parece se ter a medida do abismo que separa tais propostas da aqui apresentada. De DiCaprio se poderia dizer que é tanta energia entregue a caracterização de seu personagem, que sobraria pouco para algo mais.  Destaque para a versão de Going Up the Country com Henry Thomas, bem mais próxima dos eventos retratados, já que lançada em 1928, revivida pelo Canned Heat no Festival de Woodstock, cujo documentário Scorsese participou. Traz a última trilha assinada por Robbie Robertson, membro de The Band, também partícipe do festival. Lançado em Cannes, porém sem concorrer pela Palma de Ouro. |Appian Way/Apple Studios/Apple TV+/Imperative Ent./Sikelia Prod. para Paramount Pictures. 206 minutos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Filme do Dia: Der Traum des Bildhauers (1907), Johann Schwarzer

Filme do Dia: El Despojo (1960), Antonio Reynoso