Filme do Dia: The 24th (2020), Kevin Willmott

 


The 24th (EUA, 2020). Direção Kevin Willmott. Rot. Original Kevin Willmott & Trai Byers. Fotografia Brett Pawlak. Música Alex Heffes. Montagem Mollie Goldstein. Dir. de arte Chuck Bludsworth.  Cenografia Barbee S. Livingston. Figurinos Michael T. Boyd. Maquiagem e Cabelos Rochelle Uribe & Sterfon Demings. Com Trai Byers, Bashir Salahuddin, Aja Naomi King,  Mo McRae, Tosin Morohunfola, Mykelti Williamson, Thomas Haden Church, Lorenzo Yearby.

Houston, 1917. Um batalhão afro-americano é designado para lutar na I Guerra Mundial, sob o comando do coronel branco Norton (Church). O seu empoderamento enquanto membros do exército estadunidense se vê constantemente posto à prova pelas ofensas raciais que a comunidade branca expõe, em sua evidente insatisfação com o status conseguido pelo grupo. E também às tensões internas do coletivo quanto a qual postura ou liderança seguir. Como exemplo de liderança nata entre os afro-americanos se encontra o capitão William Boston (Byers), a sacrificar sua carreira pessoal em postos de alto comando do exército, por sua identidade para com os que vivenciam situações semelhantes de discriminação, sendo o primeiro negro a prender um homem branco após o assassinato a sangue frio de um negro em evidente episódio de racismo. As tensões culminarão em um massacre contra as forças policiais agressivas da cidade e alguns de seus cidadãos brancos. E na execução dos principais envolvidos, assim como prisão perpétua a outros membros do batalhão.

Sua maior façanha é apresentar um episódio associado à história afro-americana ao qual irremissivelmente não se pode criar uma aura de superioridade moral acima da média, com a qual a mesma história vem sido representada em produções hollywoodianas ao longo dos últimos anos. A dimensão humana é representada em sua capacidade de reação mais brutal, nada apaziguadora do status quo e pondo por terra qualquer suposição de ser mais uma produção na qual um destacamento negro do exército serve à nação apesar de toda a condição humilhante vivenciada internamente – como é o caso, dentre outros, da produção europeia, em contexto similar,  Dias de Glória, de Rachid Bouchareb. Ao se focar numa guerra contra outra nação, entra-se indelevelmente com um inescapável valor, de trato habitualmente conservador a cegar muitas vezes outras questões importantes, quais sejam, diante do nacionalismo. E o que Willmott, habitual roteirista de Spike Lee e bem mais conhecido por esta função – suas produções como diretor não possuem o orçamento evidentemente das distribuídas pelos grandes estúdios, sendo esta de longe a com maiores recursos – ressalta antes é a tensão interna intestina, nos estados do sul sobretudo. O que tal produção independente reforça é uma via não exatamente distinta, mas oblíqua, de apropriação que uma parcela representativa de artistas e técnicos afro-americanos de sua história sem ter de se submeter aos ditames de um modo de produção representativo, em última instância, deste mesmo establishment que vem a ser, via de regra, alvo crítico. E o preço a ser pago, sem sombra de dúvida, é sua distribuição internacional, e mesmo nacional, bastante restrita.  Por outro lado há um controle em relação a sua montagem e roteiro – compartilhado com o excelente protagonista vivido por Byers – impossíveis de se imaginar nas produções mais ricas, lógica nada indistinta, neste aspecto, da de seus colegas brancos. Há momentos nos quais se aproxima do que seria uma abordagem de tais produções, como o da corte entre Boston e Marie e outros nos quais o que seria um tapa na cara de troco à violência branca acumulada por gerações (e trazida à baila historicamente em clássica cena de No Calor da Noite, em meio às lutas pelos direitos civis, que somente ganhariam escopo meio século após os episódios aqui retratados) se transforma antes em uma arma a estilhaçar o rosto de seu oponente já morto ou mortalmente ferido. A cena do massacre de brancos traz aquele grau de ineditismo que, em doses módicas, é oferecido no filme com Poitier. Sendo que a chave da altivez moral agora não exclui a barbárie, a ação puramente irracional, como revide e voz última da não resignação com o estado das coisas. E, nesse sentido, é igualmente uma reflexão a se estender para os dias nos quais o filme veio a ser lançado. Dito isso, ao se encaminhar para o final há soluções dramáticas menos interessantes, entre sentimentais e militantes em seu sentido mais rasteiro, além de uma trilha musical que não se encontra à altura de seu ato de inconformidade, inclusive com o status de representação da história afro-americana pelo seus equivalentes contemporâneos. Desnecessário afirmar que há exemplos a se destacarem contra a moral dos tempos vigentes de forma mais inflexível. Seja o Coronel Norton, vivido por Church, um branco a comandar um batalhão de afro-americanos e contra o desejo de sua própria família, seja o negro que virá a ser a voz de traição do batalhão para salvar sua própria pele, sendo o delator no gigantesco processo judicial armado, para evitar a repetição e o risco de uma ação de ainda maiores proporções, inspirado pelo evento em questão. E, embora as relações afetivas não estejam excluídas do foco, como é o caso de Boston e Marie, sendo a cena do balanço um discreto equivalente dramático, por exemplo, das reminiscências soldadescas habituais em filmes de guerra (como seria o caso de Além da Linha Vermelha), em nenhum momento roubam o protagonismo de uma perspectiva histórica de longe mais ampla de ser edulcorada por estes.  Filmado em locações históricas da Carolina do Norte. E o resultado final soa mais promissor que mais pretensiosas indagações sobre o status da representação afro-americana pelo cinema do país, em filmes como Ficção Americana. |New Slate Ventures/EMJAG PROD. para Vertical Ent. 113 minutos.


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