Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#142: Histórias Extraordinárias

 


HISTORIAS EXTRAORDINARIAS. (Argentina, 2008). Um filme narrativo digital grandemente experimental e longo (mais de quatro horas) foi realizado por menos de 50 mil dólares, Histórias Extraordinárias, escrito e dirigido por Mariano Llimás, é uma obra-chave de um grupo de ex-estudantes da Fundación Universidad del Cine. Inspirado pelo professor Rafael Filippelli e o anti-cinema de seu favorito Jean-Luc Godard, este grupo realizou cinema sem o apoio do Instituto Nacional de Cine e Artes Audiovisuales (INCAA) e contra o que o crítico de cinema argentino chamou de "cinema argentino oficial". Notavelmente divertido para um filme que entrecorta suas três principais histórias sequer enlaçados, no qual não há resolução para os tópicos narrativos e a voz over (de Daniel Hendler, Juan Minujn e Verónica Llinás) domina do início ao final, Histórias Extraordinárias envolve o espectador nas intrigas da própria narrativa. 

Na primeira história, através do olhar distanciado de um investigador comissionado pelo Estado (que posteriormente sabemos ser um arquiteto), interpretado pelo diretor e nomeado somente como "X", testemunhamos a ocultação de uma pasta por um motorista de trator, que é então aparentemente assassinado. X se torna envolvido, atirando e assassinando o renascido motorista em auto-defesa, e então escapa com a valise. Quando cortamos em retorno para sua história, está encurralado em um quarto de hotel, acreditamos que se encontre envolvido em uma trama de  conspiração complexa e era procurado pelo outro sobrevivente do incidente. Onde a câmera faz panorâmicas e inclinações dentro do quadro do filme, o movimento é seguido por uma transição para um quadro adjacente, relembrando o que aconteceu no campo, com a câmera observando os personagens cada vez mais próxmos, representando o processo de X tentando compreender o que aconteceu. Os conteúdos da pasta revelam "O Massacre da Colina de San Martín", uma das dezoito frases que são capítulos, com a câmera iniciando a olhar, sobre o ombro de X, aos documentos policiais, e então através de uma série de foto-montagem, primeiro ilustrando o plano de um assalto ao ouro, e então ilustrando a tentativa fracassada, no qual 23 pessoas supostamente morreram em um incêndio. Durante os cinco meses no quarto 301 de X, também somos contados de uma história pregressa de um arquiteto dos idos do século XX, que desenhou prédios "demoníacos", filmados em várias cidades provincianas argentinas, e um romance que X acredita estar ocorrendo, baseado em suas observações da janela e lendo matérias jornalísticas sobre uma mulher desaparecida, Lola Gallo. Aqui somos apresentados com a história "verdadeira" de Gallo e seus dois pretendentes, narrada por uma mulher (Veronica Llinás) e musicada como uma telenovela, com canções pop sentimentais. 

A segunda história envolve "Z" (Walter Jakob), que se torna interessado na vida de Cuevas, um funcionário de escritório da "Federação", que subsititui após a morte deste. A busca de Z, completa com pistas,incluindo um mapa rabiscado, levam-no a um esquema de importação ilegal de animais, encontrando um leão moribundo em um celeiro remoto, e eventualmente visitando a África Ocidental! A terceira história "H" (Agustín Mendilaharzu, o diretor de fotografia), um homem que é contratado para encontrar monolitos de pedras às margens de um rio, somente para descobrir que alguém os está sistematicamente dinamitando, um andarilho estrangeiro. 

O narrador algumas vezes nos conta o que ainda acontecerá, algumas outras repete o que já aconteceu, e por vezes corrige informações que haviam sido retransmitidas a nós. Ainda que sua direção de fotografia seja predominantemente televisual, com ausência de profundidade de campo, por vezes revelam paisagens ao fundo, e mesmo paisagens luxuriantes, particularmente com H no rio, todas as três narrativas terminando na estrada. X finalmente abandona seu refúgio no hotel e parece ter se libertado do seu passado, encontrando uma mulher em um restaurante, talvez iniciando uma "história de amor". Z abandona sua busca pelo tesouro - a fortuna de Cuevas em uma conta bancária africana - e é visto por último caminhando ao longe em uma cidade  africana (filmada em Moçambique) e deixamos H completamente na estrada; ao final, a câmera efetua uma panorâmica para o bastante estranho Caesar, sentado no banco de trás de uma picupe, acompanhada pelas canções folk inglesas e americanas. As histórias não findam, apenas evanescem.

A conexão mais óbvia com a progressão labiríntica e interrupção das linhas narrativas de Histórias Extraordinárias pode ser feita com a escrita de Jorge Luis Borges. Llimás deliberadamente construiu  uma obra modernista (talvez pós-modernista), no qual as histórias são esboçadas e não completadas, a autoridade do narrador pode ser questionada, e as relações entre som e imagem poderiam fluir continuamente. Em uma entrevista online conduzida enquanto visitava o Museu de Arte Moderna de Nova York, Llamás clama que no século XX, a ficção e a narraação se tornaram um problema no cinema, onde o nada substituiu a ação e a intriga. Ele está interessado na situação do cinema padrão, no qual a voz over da narração domina a imagem, e algumas vezes a substitui completamente, quando deseja libertar as imagens da necessidade de narração.

Muito lúdico e ambicioso além de suas possibilidades - um tanque militar foi alugado para uma cena, figuras proeminentes  do teatro argentino aparecem em papéis pequenos, e o realizador viaja a muitas partes do país (e a África) - Historias Extraordinárias é um bom exemplo do cinema independente de ficção na era digital. Foi exibido na competição para longas argentinos no décimo no Festival Internacinal de Cinema Independente de Buenos Aires (BAFICI), ganhando o prêmio especial do júri e o do público de filme mais popular exibido ao longo do festival. O filme fez tanto sucesso junto ao público exigente, que foi exibido todos os domingos no Museu de Arte Latino-Americano (MALBA) em Buenos Aires por mais de um ano. Também ganhou um séquito de seguidores ao longo de suas exibições em uma série de festivais de cinema estadunidenses. Llimás produziu desde então dois longas ficcionais, Castro (2009), dirigido por Alejo Moguillanski, considerado por Quintín a ser um "sério candidato ao prêmio de filme mais obscuro da história" (2011, p. 34), e Ostende (2011), dirigido por Laura Citarella. 

Texto: Rist, Peter H. Historical Dictionary of South American Cinema. Plymouth: Rowman & Littlefield, 2014, pp. 314-16.

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