Filme do Dia: L'Inde Fantôme: Dream and Reality (1969), Louis Malle

 


L’Inde Fantôme: Dream and Reality (França, 1969). Direção: Louis Malle. Rot. Original: Guy Bechtel & Louis Malle.  Fotografia: Etienne Becker. Montagem: Suzanne Baron.

Uma das surpresas agradáveis que acompanha a trajetória de quem assiste sequencialmente os episódios dessa série produzida para a TV, nesse que é seu quarto episódio, é que uma vez mais o risco de se cair em algo próximo dos documentários padrões ou reportagens extensas sobre locais “exóticos”, com sua estrutura segmentar de tópicos tidos como interessantes, vislumbrada sobretudo no segundo (Things Seen in Madras) felizmente se arrefece. E aqui, como o título já pode encaminhar uma hipótese de suspeita, trabalha-se com a divisão possível de ser pensada então, entre sonho e realidade, como se objetividade e subjetividade pudessem ser separadas. E com uma imersão nessa experiência de uma forma mais profunda, do que meramente fruto de um momento de catarse coletiva (como, uma vez mais, Things Seen in Madras), como admite Malle, a respeito de terem passado dias sem filmar e sua dúvida se filmar já era o mais importante que vivenciar a experiência. E o filme busca traduzir uma aproximação dessa percepção ao abdicar por longos minutos de explicações sobre o que observa ao filmar uma mulher plantando em solo aquático, um padre realizando oferendas e orações em um pequeno templo em meio a um complexo religioso maior ou homem a refrescar o seu boi nas águas de um rio – que não deixa de se por para fora da carroça que é guiada pelo animal, para observar se ainda está sendo filmado, o que promove um imediato corte, como se fugisse do equilíbrio buscado aqui, de se apresentar menos interventivo que em outros episódios (menos voz over, menos embates entre o olhar de quem é filmado diretamente à câmera, menos entrevistas). Parece nítido, para os realizadores, que o episódio completo não poderia seguir os preceitos dessa toada, por motivos provavelmente diversos, que dizem respeito tanto a trajetória da própria equipe, que volta a regiões onde há maior comunicação com o restante do mundo e também com as obrigações frente a quem financia tal projeto, que certamente não apreciaria algo mais próximo de um experimentalismo meditativo. Volta-se então às conexões sociológicas com o mundo histórico mais amplo, com o passado colonial que deixou uma monumental rede ferroviária ao país, até hoje bem maior do que a da China, como afirma Malle, que flagra o descarrilhamento de um comboio de carga. As trabalhadoras na colheita agrícola ainda vinculada ao ex-Império que, com o que pouco que ganham, acumulam o que será o seu futuro dote. Observa-se as belas imagens de um parque em que se impõe uma visão de natureza, embora tudo seja artificial, inclusive o lago no qual estão afundados dezenas de troncos de árvores, na imagem mais bela até então da série e elefantes, espécie em extinção, conseguem viver sem serem domesticados para trabalhos pesados como o de transporte de madeira, como observado logo a seguir. E o único tigre encontrado é mais uma demonstração  de uma Índia de exuberância natural já não mais existente, já que domesticado e tratado por seu cuidador como não mais que um gato grande. Tudo é ritmado pela passagem dos dias de abril, como em outros episódios. E se hoje, mais de meio século após, pode soar como o mais comum dos lugares a voz de Malle contemporizando sobre o quão o nosso desejo de bem-estar havia sido responsável pela degradação ambiental, tal constatação estava longe de comumente aceita ou sequer pensada em 1969! Quando filma cenas de uma performance com motivos de origem religiosa, alguns parecem menos atentos à exibição em si que no equipamento de filmagem que registra a apresentação e tambéma si próprios. Somos brindados com outra image de impressionante beleza, igualmente elaborada pelo homem, as gigantescas “redes chinesas” que assomam em um embarcadouro pequeno. Ao contrário de uma instalação, no entanto, aqui tal beleza é manipulada com bastante energia pelos homens que as erguem várias vezes por dia. Os poucos peixes que emergem ainda são disputados com os pássaros, devidamente postados ao redor. Isso ocorre na ilha de Querala, uma das maiores comunidades católicas do país, que acredita ter vindo São Tomé convertê-los. Ao observar o ritmo de exploração que são subordinados os que trabalham em atividades extrativistas e pesqueiras na ilha, Malle se sai com uma boa tirada: “Este paraíso tropical é também um inferno.” Serem flagradas no processo manufaturado da tecelagem da fibra do coco faz muitas das jovens não se sustentarem e caírem no riso. Paradoxalmente, a província de maior influência católica é também fortemente representada politicamente pelos comunistas (de esquerda e de direita, como se diz localmente). E o mesmo episódio que se distanciara o máximo das estratégias documentas mais convencional também paradoxalmente apresenta talvez uma das mais longas entrevistas, com uma das lideranças políticas locais. Finda com as festas em comemoração ao elefante sagrado, que desfila pela aldeia paramentado, e para quem uma população que chega a passar fome, enche botijas grandes de grãos, demonstrando que nem a forte influência do comunismo foi capaz de transformar tradições longevas, antes o contrário, tiveram que se adaptar às mesmas. NEF/ORTF. 51 minutos.

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