Filme do Dia: Cartas da Guerra (2016), Ivo Ferreira
Cartas da Guerra
(Portugal, 2016). Direção: Ivo Ferreira. Rot. Adaptado: Ivo Ferreira &
Edgar Medina, a partir do romance de António Lobo Antunes. Fotografia: João
Ribeiro. Montagem: Sandro Aguilar. Dir. de arte & Cenografia: Nuno Mello.
Figurinos: Lucha d’Orey. Com: Miguel Nunes, Margarida Vila-Nova, Ricardo
Pereira, João Pedro Vaz, Isac Graça, Francisco Hestnes, João Pedro Mamede,
Tiago Aldeia.
António
(Nunes) é um jovem médico e aspirante a escritor que permanece entre 1971 e
1973 em Angola, servindo na guerra de Portugal contra sua colônia africana,
distante de sua amada esposa, Maria José (Vila-Nova), a quem manda cartas que
expressam sua paixão, melancolia, tédio, observações triviais e um momento de
pura emoção, quando fica sabendo do nascimento da filha. António tenta se
afeiçoar a uma menina africana que teve os pais mortos no conflito, porém a
relação, que se encaminha para algo como talvez a adoção dela, é bruscamente
interrompida pela chegada de seu avô, que a leva consigo.
O
recorte da guerra se dá não pelo viés dramático mas sim lírico, sendo que mesmo
o extenso rol de eventos dramáticos que o filme apresenta são filtrados
enquanto expressão lírica das cartas em questão, em um aguerrido trabalho de
composição entre som e imagem em que as imagens raramente se confundem com a
extensa metragem dedicada às cartas; ficando em um exemplo radical dessa recusa
de equiparação, tem-se o momento em que na banda sonora escutamos António se
referir a empestação de pequenos insetos de toda sorte, enquanto na visual
observamos nada mais que elefantes a se banharem no rio. Tal cena bem poderia
servir como metáfora ao próprio filme, antes preocupado numa representação
aproximada e colada a seus personagens, sobretudo o próprio António, que numa
espetacularização do conflito ou uma abordagem política do mesmo. Fundamental
para o sucesso do filme é essa tradução da rotina de um soldado, focando-se
menos nos momentos de tensão e morte que no tédio imperante a maior parte do
tempo, algo aliás não muito distante do que os próprios atores comentam a
respeito dos bastidores de uma filmagem. São os tempos mortos e o usufruto que
cada um faz deles – António na sua maior parte escrevendo e observando mais que
propriamente interagindo – que não apenas protagonizam o filme, de forma na
maior parte das vezes agônica, mas igualmente são causa e consequência da própria
narrativa. E quanto aos dois personagens por quem António nutre uma relação
menos distanciada, a do oficial com quem ocasionalmente joga xadrez e a garota
negra que passa a ser cuidada por ele, de um seus contatos são um tanto breves
(apesar de António lhe ter entregue um capítulo do manuscrito que escreve, não
se tem qualquer notícia de que o oficial de fato o tenha lido, solução
interessante que bem poderia expressar os limites do desejo humano de expressão
em relação ao mundo exterior e ao outro), da outra bruscamente
interrompidos. Saudavelmente o filme se
distancia em três pontos seminais da
vanguarda do cinema contemporâneo mundial da época em que foi produzido: tenta
traduzir o humanismo desconfiado de seu personagem, retrata um personagem que é
fiel ao amor platônico (no momento retratado pelo filme, é lógico) que nutre
por sua mulher, vivida pela própria mulher do cineasta, idealizada de forma não muito distinta das
personagens femininas de Além da Linha Vermelha, de Malick e faz uso extensivo de trilha sonora um tanto
convencional, embora nem por isso descambando para o pieguismo. Com uma
aproximação do que descreve não muito distante da sensibilidade literária de um
Elio Vitorini (e, no cinema, o referido Malick), o que mais impacta são menos
situações presentes em praticamente toda e qualquer guerra que o modo como são
filtradas pela sensibilidade de seu missivista. Outro equilíbrio bastante bem
conseguido é o que se dá entre a forte presença da voz over (na maior parte das
vezes de Maria José) da leitura das cartas e os momentos de diálogos
propriamente dramáticos que o filme traz, sendo que em mais de um momento seu
protagonista apresenta uma crescente descrença no poder de comunicação com seus
pares – e seu afastamento do grupo é perfeitamente verossímil, já que se trata
de alguém dotado de uma sensibilidade bastante distinta da maior parte do
grupo. Se as cartas são outra
recorrência no gênero, com raras exceções (como Cartas do Vietnã) possuem tal protagonismo, sem falar que o
tratamento, em termos de estilo imagético-sonoro se encontra longe de ser
exatamente clichê. O filme, por exemplo, não se escusa em apresentar uma das
mais longas adjetivações a um ser amado que o cinema já viu-ouviu, numa cena
que sugere um momento de carnalidade compartilhado à distância (evocativo,
ainda que distante da poesia visual de um L’Atalante,
de Vigo). Ou seja, não teme enfrentar o literário e o enfrenta de forma feliz e
digna. E por falar em clichê, o filme brinca com expectativas de situações
conjugadas ao tratamento visual que não se cumprem (ao menos dentro do quadro)
quando, por exemplo, observam um soldado que se livra de seu último resquício
de vinculação a sua sociedade, no caso o medalhão do exército, e portando
apenas seu rifle se embrenha completamente nu pela mata, com a câmera se
elevando a copa das árvores prenunciando uma cena de suicídio. Só que não se
ouve o estampido. Nem tampouco se tem notícia do mesmo ou qualquer comentário
de nosso missivista a respeito, demonstrando no filme um talento incomum entre
soluções de uma dramaturgia mais convencional e outras mais tipicamente
associadas ao cinema de herança modernista.
Mesmo mantendo-se casto, António é compreensivo o suficiente para
entender a necessidade de uma mulher de 24 anos pelo sexo e afirma que ela não
deve se furtar de vivenciá-lo. Filmado em p&b, apresenta composições
belamente sutis, como a observada da janela de António, que somado ao trabalho
de iluminação, traduz algo do sentimento incorpóreo vivenciado, em maior ou
menor extensão, por todos. O filme que é apresentado a exaustão pelos soldados,
provavelmente por ser a única cópia que possuem, é Rapazes de Táxi, um musical português de 1965. O fato de se tratar
de uma produção aparentemente grandemente escapista provoca um efeito de distanciamento
em relação ao contexto em que tais imagens são projetadas. O interesse de
Ferreira pelo período, próximo do qual ele próprio nasceu, já havia sido demonstrado com sua única
produção ficcional em longa-metragem anterior: Águas Mil (2009). Curiosamente os dois únicos momentos em que
António empunha uma arma se dão contra inocentes: primeiro para matar os cães
que trazem doenças com eles e, depois, contra o avô da criança a quem se
afeiçoara. Como em outros filmes de guerra, a presença feminina é polarizada
enquanto ou objeto sexual para consumo direto ou uma representação meramente
filtrada por um angustiado parceiro distante (tanto física quanto em uma
realidade cultural e geográfica tão distinta que, num dos momentos mais
tocantes, o personagem menciona o quão irreal devem soar suas cartas quando
lidas pela esposa) e em situação de risco, mais que propriamente uma figura de
carne e osso; não temos acesso as cartas da esposa, que tampouco possui
evidentemente a verve literária desse e produziria no filme, ainda que fosse o
caso, um efeito bem diverso do que de fato é. O Som e a Fúria. 105 minutos.
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