Filme do Dia: Riacho do Sangue (1966), Fernando de Barros



Riacho do Sangue (Brasil, 1966). Direção: Fernando de Barros. Rot. Original: Fernando de Barros & Luiz Marinho, a partir do argumento de Walter G. Mota. Fotografia: Özen Sermet. Música: Guerra Peixe. Montagem: Glauco Mirco Laurelli. Dir. de arte: Zulano Pessoa. Cenografia: Apolo Monteiro. Com: Alberto Ruschel, Maurício do Valle, Gilda Medeiros, Turíbio Ruiz, Jacqueline Myrna, Ivan de Souza, José Pimentel, José Carlos Cavalcanti Borges.
Ponciano (Ruschel) é um tropeiro que chega e provoca reação dos homens do Coronel Pereira (Borges), por ter matado um dos seus. Enquanto isso, uma verdadeira cidade começa a ser criada em torno da figura visionária do Divino (Ruiz). Ponciano, que se apaixonara pela filha do Coronel, Branca (Myrna), leva uma surra dos capangas do Coronel, sob a liderança de Floro (do Valle) e, acamado, é acolhido por Rita (Medeiros), que passa a ser sua companheira. O casal se junta na defesa do Divino. O Coronel, que não consegue andar, acredita ser o momento de conseguir sua graça orando para o boi sagrado e  se desloca para a região sob influência do Divino, justamente no momento em que as tropas federais resolveram massacrar a comunidade religiosa.
A primeira cena já é um cartão de visitas do que esperará o espectador nos 100 minutos seguintes, com uma evocação dos conflitos rurais entre agropecuaristas e agricultores, no qual o agricultor é um arremedo grotesco de figura suplicante. Produzido luxuosamente em cores (Eastmancolor), algo bastante incomum ao cinema brasileiro do período, cores essas que se tornaram esmaecidas com o tempo ao ponto de algumas cenas parecerem ter sido realizadas em p&b, o filme ressoa como um atestado do sucesso comercial dos nordestherns, tentando emular os arquétipos do faroeste norte-americano em proporções brasileiras, não faltando as figuras do padre, do beato (com um tom de fala pausado e macio, como se estivesse sempre pregando), coronel (esse com a voz rascante, irritada e autoritária sempre), tropeiros, cangaceiros, messianismo à la Canudos, etc. Desde a cena inicial fica impossível não evocar Deus e o Diabo na Terra do Sol, de dois anos antes, e o quão distante é essa proposta estética daquela. Aqui, movimentos de câmera “profissionalmente” pensados fazem com que a imagem, por exemplo, afaste-se de um grupo de beatas a cantar para o público que assiste a missa, quase ao ponto de se visualizá-los antecipadamente na decupagem prévia. Ou ainda a aproximação da câmera da janela para descortinar o sol rascante, ambiente que será trabalhado pela cena seguinte.  O Cariri evocado por Barros é um lugar imaginário povoado por todos esses clichês, porém se em Gláuber Rocha tampouco se deixava de haver um descolamento do realismo chão, esse se fazia para se pensar todo um universo de relações de poder, inclusive vinculadas a elementos da subjetividade, aqui esse lugar é um mero passaporte para uma imitação canhestra do cinema hollywoodiano. Se tal modelo de folclorização já se encontrava posto em filmes como O Cangaceiro, daqui não se consegue extrair a beleza plástica de várias cenas daquele. Diálogos sofríveis e interpretações canhestras se somam para o medonho resultado final. Não faltam pitadas de erotismo, como a cena em que Rita se despe para se deitar ao lado do enfermo, um prenúncio modesto do que faria boa parte dos que se encontram aqui dos dois lados da câmera pouco tempo após, ao abraçarem com vigor a pornochanchada. Algo que vale ainda mais para a iniciação de uma nova beata, que tem as costas desnudas em um ritual que lembra muito mais um sado-erotismo que propriamente um culto religioso.  Quando o Ponciano de Ruschel faz seu auto-de-fé privado de que pretende permanecer e lutar por suas terras, sua declaração bem poderia ser uma versão masculina e monocórdica da de Scarlett O’Hara em ...E O Vento Levou. E se o filme usa e abusa de nomes históricos, tais como o do “Padim Ciço”, sua referência maior ao universo do cinema não deixa de trazer inusitadas inspirações, como o senso atmosférico que envolve a visita de Rita e Ponciano ao bunker do Beato cuja canastrice é menos fundamentada na própria miséria popular como no filme de Gláuber, que em um vilão genérico de filmes de ficção-científica ou horror. E por falar em Gláuber, não nos esqueçamos da presença de uma das figuras icônicas de Deus e o Diabo, que voltaria a surgir no igualmente em cores  O Dragão da Maldade, Maurício do Valle, que faz as vezes de outra figura de vago esteio histórico, Floro Bartolomeu. Em nenhum momento talvez o senso de nordesthern seja tão destacado quanto o que o herói é observado brevemente cavalgando galante tal e qual o de um semelhante em um western B hollywoodiano, ainda que na trilha sonora se tenha um canto regional de viola. Coroando sua bizarrice está seu inaudito final em que, aparentemente sem saber de como se desvencilhar dos rumos mais complexos que sua trama exigia, observa-se um herói passear por uma praça coalhada de mortos resgatar um bebê nu que chora, numa deslocada evocação cristã que apenas salienta o quão destrambelhada é se encontrar qualquer lógica nessa produção que não a do próprio espetáculo. E dentro da mesma, curiosamente, o filme faz questão de deixar de fora, por exemplo, potenciais clímaxes dramáticos como a morte do Divino ou de definir-se entre a dimensão social mais ampla e o arremedo de triângulo amoroso que esboça mas não desenvolve. De tanto que é lançado e que se perde pelo caminho se fica com a ideia menos de complexidade que de falta de rumos que, apesar de alguns bons momentos isolados, faz com que se sinta alívio quando surge as quatro letras que selam seu final sobre sua última imagem. Aurora Duarte Prod. Cinematográficas/Paranaguá Filmes para Aurocine. 101 minutos.

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