A cinematográfica crise da Cinemateca Brasileira
Um relatório da Controladora-Geral da União revela os bastidores da crise que ameaça paralisar as atividades do mais importante órgão de preservação audiovisual do país
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Diretor executivo da Cinemateca Brasileira desde setembro de 2002,
Carlos Magalhães estava na sede da instituição, na Vila Mariana, quando
recebeu um telefonema do recém-empossado secretário do Audiovisual,
Leopoldo Nunes. O novo secretário queria cancelar sua primeira reunião
com Magalhães, agendada para o mesmo dia em Brasília, e comunicar que a
ministra da Cultura, Marta Suplicy, havia perdido a confiança nele. A
exoneração, em janeiro deste ano, daria início a uma crise
político-administrativa para a qual ainda não há uma solução
satisfatória.
Fundada em 1956 e responsável por preservar e difundir o acervo
audiovisual do país, a Cinemateca é a guardiã de mais de 30 mil títulos.
Agora, corre o risco de ter suas atividades paralisadas. As origens da
crise estão num relatório da Controladoria-Geral da União (CGU) a que
Época SÃO PAULO teve acesso. O documento é resultado de uma auditoria
que envolve a Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC), entidade civil
criada em 1962, e a Secretaria do Audiovisual (SAv) – subordinada ao
Ministério da Cultura (MinC).Para entender a trama e seus desdobramentos, é necessário destacar dois fatos importantes ocorridos durante a gestão Magalhães. Em 2003, a Cinemateca, antes vinculada ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), passou a responder à SAv. A segunda mudança se deu em 2008, quando a SAC se tornou uma organização da sociedade civil de interesse público (Oscip), uma entidade jurídica que pode firmar parcerias com governos. Essa transformação permitiu um termo de parceria entre SAC e SAv, responsável pela transferência de mais de R$ 105 milhões do MinC para a Cinemateca entre 2008 e 2010. Só para comparar, em 2007, antes da assinatura do termo, o repasse foi de apenas R$ 2.679.206; no ano seguinte, saltou para R$ 15.522.570, chegando a R$ 51.911.575 em 2010 (quase 20 vezes o valor transferido três anos antes). Obviamente, não se tratava de “doações”. Tais valores correspondiam a uma série de projetos denominados planos de trabalho, cuja administração ficava sob a responsabilidade da SAC – a quem cabia prestações anuais de contas sobre cada um deles.
Esse caminho menos burocrático para a circulação de dinheiro público viabilizou projetos de interesse da Cinemateca, mas não só. Recursos foram usados também para empreitadas mais ligadas à SAv, como o Laboratório de Cultura Digital e Tecnoestética, que envolvia “ações audiovisuais colaborativas em aldeias indígenas no Norte e Centro-Oeste do país”. O termo foi firmado no ano em que Juca Ferreira substituiu Gilberto Gil no MinC. Procurado, o hoje secretário municipal da Cultura de Fernando Haddad não quis comentar o assunto. De acordo com a CGU, o acompanhamento das prestações de conta competia à SAv. A Pasta, durante a vigência da parceria, foi ocupada por Silvio Da-Rin, Newton Cannito e, já na gestão de Ana de Hollanda no ministério, por Ana Paula Santana, entre janeiro de 2011 e setembro de 2012.
Na época presidida pela professora da USP Maria Dora Mourão e atualmente pelo economista Roberto Teixeira da Costa, a SAC afirma que todas as prestações de conta foram encaminhadas à SAv e contratou a auditoria PricewaterhouseCoopers para provar a lisura dos gastos. Não é essa, porém, a única irregularidade apontada pelo relatório da CGU. O documento questiona a contratação de pessoal terceirizado para os planos de trabalho (que na verdade estariam garantindo o próprio funcionamento da Cinemateca) e o pagamento de uma taxa de administração como forma de remunerar a SAC. A Controladoria pede ainda explicações a respeito de R$ 24 mil gastos com 78 passagens aéreas e cobra a avaliação de cinco acervos adquiridos, sem comprovação de que valiam o que se pagou por eles: Canal 100 (R$ 6 milhões), Glauber Rocha (R$ 3 milhões), Atlântida Cinematográfica (R$ 3,5 milhões), Cinematográfica Vera Cruz (R$ 2,5 milhões) e o da atriz Norma Bengell (R$ 585 mil).
Embora possa acionar a Advocacia-Geral da União (em casos de improbidade administrativa) ou o Ministério Público e a Polícia Federal (se encontrar indícios de crime), a CGU não tem poder punitivo. Até o momento, apesar de o relatório apontar possíveis irregularidades, ninguém foi indiciado e tampouco há evidências de enriquecimento ilícito ou desvio de verba. A maior parte das responsabilidades, inclusive, parece recair sobre a SAv, por não ter fiscalizado devidamente a parceria.
PARALISIA
“Confio plenamente na ministra, que tem cumprido tudo o que nos prometeu”, diz o professor da USP Ismail Xavier, presidente do conselho da Cinemateca. “Ela já anunciou que logo teremos uma solução. Só não sabemos o que esse ‘logo’ significa.” Para dirimir o problema da falta de funcionários, a SAv garante ter elaborado um plano de gestão emergencial. “Não basta”, afirma o também professor da USP e membro do conselho Carlos Augusto Calil. “Estamos perdendo pessoas que passaram anos na Cinemateca. O ministério precisa se posicionar de outra maneira, ou em janeiro de 2014 a instituição para de vez.”
A CGU sugere que, dada a falta de prestação de contas, a SAC seja inscrita no Cadastro de Entidades Privadas Sem Fins Lucrativos Impedidas. Isso a proibiria de firmar convênios, contratos de repasse ou termos de cooperação de qualquer natureza. Na prática, inviabilizaria acordos como os que permitiram a realização da mostra Clássicos & raros, com o Centro Cultural Banco do Brasil, ou a construção da magnífica sala BNDES por meio da Lei do Audiovisual. Para uma instituição que sobreviveu a incêndios, desalojamentos e uma quase crônica falta de recursos por décadas, não seria a maneira mais digna de sair de cartaz. O que não falta é gente torcendo por um final mais feliz.
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