Meu Caro Diário 18/04/2004

 Dia bonito, como tem sido os últimos. Amanheci com uma vontade de entrar num clima de imersão da leitura das cartas de Oiticica e Lygia Clarke no Parque Villa-Lobos, mas tive que desistir da idéia por conta de uma necessidade mais urgente que era a de comprar água mineral para preparar a vitamina – a água daqui, mesmo filtrada e tendo já passado por um filtro de parede estava provocando conseqüências diarréicas em Josué e em mim antes dele comprar o primeiro garrafão umas duas semanas atrás. Então acabei indo até a Praça do Por do Sol e lá li um pouquinho do livro, sem deixar de me sentir um pouco tenso e esnobe. Comprei então a Folha de São Paulo e quando me dirigia para o super-mercado observei homens efetivando serviços como empilhar algo para guardar em um carro ou, mais adiante, passar um rolo com tinta azul no chão de uma calçada, diante de uma escola infantil, que me fizeram admirá-los enquanto expressão de fé na organização de algo que luta contra o inevitável processo do tempo e que em mim parece tão pouco afiado – nesse sentido, não deixo de admirar igualmente a persistência com que Josué vem montando seu aquário, já completo, dando tempo ao tempo, observando os ocasionais óbitos, etc., quanto a mim parece haver sempre uma tendência maior para a acumulação de detritos – livros, roupas – que acabam me provocando um grande incomodo, mas que não sei que fim dar (principalmente, agora que não possuo um cabide ou uma estante decente). Ontem, quando incidentalmente minha mão tocou a de Josué quando ele me mostrava os estragos que a tinta de uma calça minha havia feito na roupa lavada, pude perceber o quanto de tensão com relação a sua sexualidade ele vivencia. A decisão de escrever esse diário acaba sendo frustrante, pois eu acho que o ideal seria falar para um pequeno gravador as sensações no momento que as vivencio – se é que o teria coragem de fazê-lo publicamente sem temer ser considerado louco, porque a escrita ainda se torna mais infiel que a fala no processo de organização do livre fluxo de sensações e pensamentos que atravessam nossa mente durante o dia. Sinto-me agora, horas depois, verboso em imagens e – como sempre fraco em ações ou estratégias para disciplinar um rumo para mim mesmo. De qualquer maneira, tentei não me abater completamente. (...)  Depois de algumas horas, (...) , onde existem momentos muito belos de reflexão de ambos, inclusive com percepções um tanto quanto sofisticadas sobre o futuro do Brasil (Oiticica) e o risco dele se transformar num pesadelo imperialista a la USA. Ao mesmo tempo, sofro antecipadamente imaginando que a experiência do exame amanhã possa ser tão chata (o passar mal no ônibus) quanto a da semana passada, inclusive porque hoje praticamente só comi um macarrão mal esquentado no micro-ondas e boa parte duma espécie de panetone com chocolate, comprado por mim, mas que não me pareceu tão agradável quanto da primeira vez. Pensei em ir à tarde ao museu Lasar Segall mas acabei decidindo e optando descaradamente pelo programa domingo pseudo-melancólico-reflexivo. Ia ser exibido o filme da Sandra Kogut, que gostaria de ver para fazer uma apreciação em relação ao “33” de Goifman. De qualquer forma, depois de ler essa correspondência, ficam-me sensações diversas que vão da compreensão de ser um mero absorvente dos espetáculos e não um criador, nesse sentido mais próximo de uma certa burocracia metódica, que no fundo anseio e a quem devo herdar certamente em grande parte que da verdadeira coragem do rompimento com as amarras num verdadeiro círculo vicioso – não rompimento com as amarras por conta da não existência de nenhum esforço ou motivação de construir algo, nenhum esforço de não construir algo por conta do não rompimento com as amarras. Minha conversa com Analúcia Sulina pelo telefone talvez tenha me deixado com gosto de doce de marmelada, com um sabor terno e doce de ouvir uma voz conhecida, mas ao mesmo tempo com sua habitual amargura dominical. (...)

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