Filme do Dia: Made in England: The Films of Powell and Pressburger (2024), David Hinton

 


Made in England: The Films of Powell and Pressburger (Reino Unido, 2024). Direção David Hinton. Fotografia Ronan Killeen. Montagem Margarida Cartaxo & Stuart Davidson.

Assistir o documentário que, contrariando o título é muito mais sobre Powell (o maior poder criativo, a amizade com Scorsese) que Pressburger é também um triste atestado da efemeridade do poder e influência dos que trabalharam numa indústria tão volátil quanto a cinematográfica, mesmo (e talvez até mais) em sua era clássica. Embora não tenha sido figura hollywoodiana, mas sim da indústria britânica, é chocante se perceber a surpresa de Powell ao ter reconhecida a sua grandeza por um cineasta iniciante, do outro lado do Atlântico. E auxiliado por este, inclusive financeiramente. Felizmente, Scorsese não nos deixa a ver navios (apenas o da imagem do filme) quando o quesito é nomear os filmes cujas imagens incorpora, como boa parte de documentários semelhantes. Se não o faz através do recurso mais convencional do crédito sobre a imagem, ele faz questão de nomeá-lo. E consegue trazer uma evocação da riqueza da textura da imagem de um filme como O Fantasma do Farol (1935), talvez o exemplo mais sucedido de quota quickie do diretor, como ficou conhecida a produção efetivada para cumprir tabela junto à legislação britânica que previa uma percentagem mínima de produção nacional nas telas do país. Após esta fase em sua carreira, do aprendizado com Rex Ingram aos quota quickies, Powell dirigiria o filme que Scorsese considera como o primeiro mais pessoal, The Edge of the World, a tirar partido da monumentalidade dos rochedos escoceses com fins dramáticos. Alexander Korda viu o filme e o contratou para fazer O Espião Submarino (1939), um thriller de guerra. Foi o filme ao qual foi apresentado ao roteirista Emeric Pressburger, outro húngaro como Korda, e que já havia vivido um momento feliz de sua carreira na UFA alemã. Paralelo 49, de dois anos após, trazia a história – nada incomum até dos filmes-B americanos como Vale dos Perseguidos – de fugitivos nazistas. E, embora com outro grau de sofisticação, ou de ausência desta, a produção estadunidense tampouco confundia necessariamente alemães com nazistas. A colaboração dos dois parceiros, Pressburger cuidando sobretudo do planejamento e escrita das histórias, Powell com sua consecução prática,  criam a The Archers,  após o sucesso comercial de Paralelo 49, que também renderia um Oscar de roteiro. E eles tiveram a liberdade criativa possível, ironicamente, graças ao distribuidor J. Arthur Rank, inclusive de produzir um filme a ironizar muitos dos antiquados protocolos do Exército britânico, durante a guerra, em Coronel Blimp: Vida e Morte, projeto que encontrou fortes obstáculos e a antipatia aberta de ninguém menos que Churchill. Impressionante as cores do filme – e não é por acaso que Powell jocosamente se ajoelha diante do antigo prédio da Technicolor. A audácia de não apresentar a cena do duelo entre os dois personagens, pois mais importante para Powell & Pressburger era demarcar que ali se conheceram e naquela situação – e Scorsese, não deixando de puxar sardinha para si, e para os dois, apresenta uma cena de seu superestimado O Touro Indomável, que faria uso do mesmo princípio, sendo mais importante a travessia de La Motta até o ringue, que a luta em si.  A vida profissional é satirizada, enquanto a emocional levada a sério – uma das habituais “boas tiradas” de Scorsese (neste quesito, a metodologia, e mesmo a postura do cineasta em sua cadeira eventualmente se dirigindo diretamente à nós, é a mesma, sem tirar nem pôr de suas viagens pelo cinema americano coproduzidas pelo BFI, e o fato de não assinar a direção, e sim a produção-executiva nada muda a respeito). E todas as mulheres significativas na vida de Blimp são vividas pela mesma Deborah Kerr, com apenas vinte anos, e já demonstrando a que veio. E uma vez mais Scorsese o vincula a uma obra sua, A Época da Inocência, que mesmo sendo adaptação de obra literária conhecida, diz possuir a mesma frustração de um amor não concretizado de Blimp. Para Scorsese se trata de seu primeiro filme “profundamente pessoal” e primeira obra-prima. Em Um Conto de Canterbury, filmado em p&b, o passado emerge com seus ruídos e vozes no passeio da personagem pelo campo. Os peregrinos dos tempos de Chaucer se deparam, repentinamente, com aviões de guerra. A espiritualidade emerge na obra dos dois, mesclada ao amor de Powell por sua Kent natal. Foi o primeiro fracasso comercial da dupla. A explicação de Scorsese era de ser demasiado estranho e elusivo para o público de então. A dupla não se abateu com o fracasso. Até porque já tinham uma ideia muito nítida do projeto seguinte, Sei Onde Fica o Paraíso, com uma protagonista feminina nada distante da personalidade da recém-casada com Pressburger, que o escreveu em cerca de uma semana. Era um prazer para Powell estar novamente filmando na Escócia. Pressburger, o chamaria, após Canterbury (e também fotografado em p&b) da segunda cruzada contra o materialismo. Quando se fala em liberdade relativa da dupla, basta se ouvir Powell falando que nenhum filme seria produzido no Reino Unido durante a guerra, sem a aprovação do Ministério do Interior. Que não apenas se satisfazia em aprovar ou não projetos, mas mesmo de sugerir alguns, como um que melhorasse a relação com os Estados Unidos, sólida durante o conflito, mas que dava sinais de sensível piora com o final da aliança bélica. A resposta foi Neste Mundo e no Outro. Neste um piloto, vivido por David Niven, vive entre dois mundos, o dos mortos (burocrático e monocromático) e o dos vivos (em Technicolor, repleto de poesia, paixões, frustrações). Os cenários do filme são de uma monumentalidade preciosa evocativa dos seus tempos com Rex Ingram – ou, no caso de Pressburger (não lembrado neste momento por Scorsese) da UFA. Em ambos os casos, herança do cinema mudo. Assim como algumas das trucagens efetuadas. Pode-se apostar, não sem grande risco, e sem comentário de Scorsese, que se limita à influência da dupla em seus próprios filmes,  que a situação de coma/anestesia e as imagens trazidas para ilustrar tal situação, foram senão as primeiras, bastante influenciadoras na imagética envolvendo hospital/maca/planos baixos a ressaltar ao mesmo tempo a situação de submissão e vulnerabilidade do paciente e o teto e/ou equipamentos hospitalares – O Show Deve Continuar usa e abusa do recurso. Nos dois filmes ajudando a enquadrar o surrealismo/fantástico do que apresentam. Foi o auge de sua aproximação com o establishment igualmente, com première com a presença da família real, pela primeira vez no cinema mais cobiçado de Londres. Porém, a guerra devia ser deixada de lado no próximo projeto. A fonte criativa de Pressburger dava sinais de certo natural relaxamento. E uma nova guinada se deu para o The Archers produzir uma primeira adaptação, Narciso Negro, com um grupo de freiras e ambientado em um Himalaia reconstruído. Segundo o famoso diretor americano, poucos filmes trazem um uso tão expressivo das cores, inclusive no que tange à sexualidade, como no primeiro plano no qual a Irmã Ruth passa batom nos lábios, após já ter cortado seus cabelos de forma provocativamente moderna. Depois de uma sequencia experimental de dez minutos, sem diálogos e filmada a partir da música criada antecipadamente para a cena, a ousadia seguinte foi criar um balé original para o cinema, com uma bailarina como protagonista, Moira Shearer. SapatinhosVermelhos. O caráter obsessivo de Lermontov no filme é cotejado com o Travis Bickle de Taxi Driver. Assim como muitos de seus sucedâneos, na obra do americano (e observamos um clipe de cenas de filmes diversos ao som de Sunshine of My Love do Cream – como se quisesse também chamar para o conjunto Coringa, que utiliza outro grande sucesso da banda). O filme também marca a ruptura de The Archers com Rank, profundamente desgostoso com o que via como um pretensioso – e caro – “filme de arte” que não renderia retorno nas bilheterias. E, como a pesquisa histórica é um dos trunfos deste documentário, nesse momento visualizamos as cartas trocadas entre ambos. E a rearticulação da dupla sob os auspícios de um novo velho produtor, Alexander Korda. De Volta ao Pequeno Apartamento é também uma guinada para outros rumos, mais realistas, em uma produção de pequeno orçamento e em p&b. Porém, com personagens tão atormentados quanto em suas produções mais extravagantes. E parêntese: David Farrar parece uma antecipação, ao menos fisionômica, de Daniel Day Lewis. Sucesso de crítica, fracasso de público. Portanto, incapaz de gerar outras produções do tipo, abraça-se o escapismo, sem grandes dramas interiores, com uma refilmagem de Korda, Aventuras de Pimpinela Escarlate, que desagradaria profundamente Sam Goldwyn, um de seus investidores. Pois até mesmo nesta produção, foram adicionados momentos de evocação vanguardista, como os espirros que se transformam em fogos de artificio. Sem a mesma liberdade criativa de outrora, novas filmagens e edições foram feitas, não satisfazendo ninguém ao final. No mesmo ano, outra associação com outro produtor lendário hollywoodiano, David Selznick, rendeu Coração Indômito, veículo pensado para sua então esposa Jennifer Jones. Houve um desacordo com Selznick, que evidentemente tinha outra ideia de filme e a lançou nos Estados Unidos, com novas filmagens a cargo de Rouben Mamoulian, chamando-o de The Wild Heart. Ao final, duas experiências frustrantes com a mediação de Hollywood. O retorno a propostas conceitualmente mais próximas da dupla foi Contos de Hoffman (1951).  O duelo na gôndola parece repetir estratégia do apresentado anteriormente em Coronel Blimp, embora nesta produção seja escolhida como a cena cinematográfica favorita de Scorsese. Ou ainda a sobreposição do movimento das águas do mar sobre o rosto de uma mulher, que já havia gerado uma bela cena em O Fantasma do Farol. Para Scorsese, o filme teria chegado mais próximo do desejo de Powell de um cinema total, reunindo a expressividade de várias outras artes. Sua première foi, como nenhum filme antes, no Metropolitan Opera House de Nova York. Porém, quando o filme foi exibido em Cannes, Korda achou o segundo ato demasiado longo. E Pressburger concordou. Seria a última parceria com Korda. Pior que isso, a aparentemente inabalável colaboração de Powell com Pressburger sofreu danos. Enquanto Powell tinha ideias megalomaníacas que não se concretizavam, Pressburger realizaria um filme solo, para Korda, Twice Upon a Time, que não caiu nas graças do público. A volta da dupla, com o musical Oh...Rosalinda! (1955), não foi promissora. E tendo contra si, orçamentos bem mais apertados que os de suas produções mais famosas. A Batalha do Rio da Prata, do ano seguinte, um filme de guerra à moda antiga. Embora artisticamente longe de interessante foi sucesso comercial e teve um première concorrida, na qual a Rainha Elizabeth saúda um pequeno exército das maiores celebridades cinematográficas de distintas gerações como Joan Crawford (não citada), Brigitte Bardot e Marilyn Monroe. O sucesso de público voltou a fazer com que a dupla entrasse no radar outra vez de Rank, que ofereceu um contrato de cinco anos e vários filmes, recusado por Powell, temente de realizações medíocres e ausência de autonomia, aceitando fazer apenas um, Perigo nas Sombras (1957).  Estrelado por Dirk Bogarde, Pressburger desejava o realizar próximo da estética realística documental, enquanto Powell, como sempre, punia por uma abordagem romântica. E não desejava Bogarde, escolha de Rank. Mesmo nesse momento menos inspirado da carreira da dupla, Scorsese consegue introduzir cenas destas produções rotineiras que parecem ser um comentário sobre o momento vivenciado então de suas carreiras, como o feito ao filme de guerra sobre “o ocaso de dois deuses.” O resultado foi tão precário e a produção tão atribulada que selou o fim da parceria. Powell somente veria o filme trinta anos após e ficaria espantado com o quão antiquado e medíocre é. Powell, que permaneceu amigo de Pressburger, e nenhum dos dois falou nada de negativo do outro, realizaria mais um grande filme sem este, A Tortura do Medo (1960). Filme que demonstrava sua continuada necessidade de experimentação e ousadia. As críticas pesadamente negativas, cujos trechos são recortados, são uma potente amostra de quão transgressor o filme foi em seu contexto. A sua má recepção transformou o diretor em uma espécie de maldito “não financiável” e o panorama cinematográfico britânico era dos kitchen sink, filmes que bebiam no documentarismo do Free Cinema, com os quais muitos dos diretores haviam colaborado, e na Nouvelle Vague. Para estes diretores, Powell representava o equivalente ao “cinema do papai” tão criticado pelos colegas franceses. Realizaria, mais para o final da década, duas produções na Austrália, sendo uma delas A Idade da Reflexão, com James Mason e uma nova promessa...Helen Mirren. Foi seu último filme. finda em chave mais pessoal, com Scorsese comentando sobre os 16 anos com os quais conviveu pessoalmente com Powell – que inclusive casaria com sua montadora de longa data, Thelma Schoonmaker. Então, como frisado há um vínculo afetivo com Powell e, sobretudo, com os filmes que fez com Pressburger, que embora tenha morrido somente dois anos antes de Powell, aparentemente não conheceu pessoalmente. Ao mesmo tempo, deixa aparente que a valorização que figuras como ele e Coppola efetuaram dos filmes da dupla foi fundamental para sua reavaliação crítica no próprio país natal, materializado no Bafta honorário recebido pela dupla das mãos de uma algo desconcertada – e emocionada - Deborah Kerr. Seria por temores politicamente corretos que tão pouco é falado de O Ladrão de Bagdá? |Tem Thousand 86/Ice Cream Films/BBC Film/Screen Scotland. 131 minutos.


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